A marca da morte



O sonho de Alícius era mover a mão de Lúcifer. Sabia que a tentação não era mera fração de sentimento humano ou bestial; uma conquista dessa ordem o faria alcançar níveis elevados na hierarquia dos iníquos. Em contrapartida, a afetividade mais ingênua tinha, já em Freud, explicações um tanto quanto não convencionais e o jovem robusto vivia inconscientemente esta batalha dual. Uma besta a servir Lúcifer, Alícius tornava a noite escarlate com mais sangue e prazer quando fazia cintilar os olhos das fêmeas do Espaço Neural. Embriagadas e sedentas por mais prazer e pelo efêmero gosto do sucesso e da fama, o servidor da ira e de Eros as despia como a um anjo e deleitava-se em suas fraquezas.
Na cidade de Tanatus, ria da maldade e afagava o seu ego o Servo das injúrias, que o tornava mais admirado por seu mestre a cada dia. Até que, num súbito, conheceu Marcelle Piacovennat. Ele não se permitiria como vulto penumbroso em frestar o olhar pela alma dantesca daquela ninfa selvagem. A jovem geniosa e inacessível alcançou na dor uma pureza inefável, contudo nunca havia sido consagrada a nada e a ninguém. Era uma gema preciosa a Deus e aos deuses do paganismo.
Nos tentáculos de um e na algibeira do outro disputavam solenes os poderes e as potestades:
— Considero-a batizada pelo sangue, pois vive em martírios e perseguições na defesa da justiça. – Emendava Proteus.
— Não me venha com essa conversa mole, Proteus! É uma menina pagã, descendente de ateus, além de tudo não está morta. Como ousa pleitear essa alma insolente?
— Não podes criar dificuldades à misericórdia divina. Tenho muitos motivos para aqui estar e apresentar a sua defesa.
— Esta não foi provada no cadinho da tribulação, não elevou preces ao senhorio daquele que representas...
— Quer fazer ignorar o sentido das lutas dessa jovem? O seu ideal em favor de todos indistintamente é um fato inquestionável, Abrólios. A quase mutilação e a coragem em seus conflitos são verdadeiras provas de sua bondade e resignação.
— Sabes o trato. A salvação é pela graça e pela fé. Diga-me em que ela acredita. Ambiciosa, ela nunca olhou para trás nos seus desígnios e feriu a muitos com a sua frieza...
— Como pode, Carcamano, julgar as feridas de uma batalha em que ela era o grande alvo? E sempre agia na defesa de interesses não seus, mas de todos os seus compatriotas.
— Apelo ao ministro dos anjos... Chega de conversa á toa! Não abro mão dessa guerreira maligna por nada. Tenho planos para ela ao meu lado...
— Isso é uma piada... Você não tem com ela nenhum contrato ou pacto...
— Tenho com a sua mãe... Évora...
— Mas como? Não tem ela culpa alguma da insanidade de Évora.
— Tem, pois a mãe sagrou-se sacerdotisa no templo de Diana, e feriu-se em sacrifício. Ela e as virgens da família. Como ousas impedir-me a apreensão desse dote?
— Ok, façamos, pois, ao jeito do concílio de Maltrão.
—Ah, finalmente, apelou à lei, não é Proteus? Pensas que não me preparei para tal situação?
— Vamos, decida! Como se dará a campanha?
— Ela será provada antes de subir a Tanatus, o que acha?
— Ok, não sou de discordar de provações. Da-me gosto ver o sofrimento dos mortais.
— Creio também que isso a levará à perfeição. Lamentavelmente, terá de ser assim. Estarei no Oráculo de ouro.
— Ahahahaha. Sinto aqui do meu lado a sua preocupação, Proteus. Sabe que tenho armas poderosas. Essa, garanto, será minha.
Despediram-se enquanto abria-se um elo dourado em meio ao espaço, fazendo imergir a silhueta de um corpo iluminado em milhares de matizes.
A filha de Évora era uma alma em abandono. Não cedia o espírito a encantos. Tinha a mente dominada por lutas interiores indizíveis. Ela se acreditava isenta de artifícios para o amor. Inconsciente de sua beleza era autêntica, às vezes fria, uma alma indócil.
Alícius, convocado por Abrólios, servo de Lúcifer, tinha a alma afetada por vultos iluminados. Sua alma dobrava-se como cartilagem, afagando o bem e o mal a gosto. Relutava contra as culpas interiores e as tentava afastar com mais maldades. Vivia o sentimento duplo da pertença ao bem e ao mal. Não à toa, Lúcifer encomendou a jovem ao sacrifício, pois queria também uma prova de Alícius contra a singeleza daquela beldade. Divertia-se ao mesmo tempo que temia perder a força de um general tão capacitado em fazer maldades.
Naquele início de ano, sabia dos poderes que exerceria além dos dogmas do bem e do mal... Por isso atacou:
— O conselho tem para comigo algumas queixas, Alícius. Acham que lhe devoto apreço demais. Em ti a corrupção não entorpece como àqueles. Então, concedo-te a possibilidade de militar em meu favor numa batalha das mais sutis.
— Como quiser, Lúcifer. Adianto que não temo a nada...
— Isso é bom. O que terás de fazer não é tarefa das mais difíceis. Concordo com Abrólios que tens um espírito sutil e envolvente, por isso entrego-te essa musa. Ela confundiu a muitos com seus sonhos mais insanos. A jovem que vês abaixo desse vitral receberá o dom de elevação. Conforme Maltrão, terá a possibilidade de decidir entre o bem e mal. Não sem uma forcinha. Entende?
— Conte comigo!
— Não será fácil, adianto que atrairá todas as forças e contingências que há no céu. É guerreira. Se te identificar como um mal não terás chance, compreende?
— Virá conosco ou não me chamo Alícius, chefe.
— É isso que eu queria ouvir... Vá! É toda sua... Despertará em pouco tempo; então, apresse-se!
Alícius já se encontrara a beira do lago Neural quando via despertar aos poucos a recente visitante do plano. Deitou-se sobre o lago que infundia em si trocas de fluidos luminosos com o corpo de um jovem usuário de drogas. Erguendo-se confiante do abatimento imposto pelo entorpecente, venceu o fluxo termal do lago, onde uma sombra opaca emergia marcando sua ausência. Chegava à terra agora.
No inconsciente de Alícius, Lúcifer falava:
— Essa devassa está a malcomunar contra mim! Mate-a! – ordenava o príncipe das trevas.
— Pois que mal te fez a pobre mortal, amigo Lúcifer? – redargüiu o súdito.
— Não me venha, Alícius, com suas retomadas irônicas!
— Pois bem... Se não me convém saber o porquê dessa simples humana causar-lhe tamanha inquietação, ó senhor dos vales, menos conveniente é um mestre do saber (Lúcifer em sua origem etimológica significa luz do saber ou da sabedoria) se dobrar a ela nestas demonstrações de insegurança.
Alícius nunca encontrara em ninguém no mundo uma forma qualquer de vida que causasse ânsias em seu tutor, por isso mesmo resolveu conhecê-la com o falso propósito de ajudar o mestre. Em sua forma mortal, curiosamente, ele não tinha nada de atrativo. Sabia da inteligência e capacidade intelectual da jovem.
Trajando-se sempre de negro e com o formalismo adequado à academia, entrou no Café para um lanche. Afogada em livros e resumos escolares, subitamente, choca-se com o estranho rapaz que se colocava à frente como obstáculo a sua passagem. Caem os livros e, como o mais sedutor dos demônios, Alícius provoca o acaso e a surpresa que tanto encanta as mulheres. Gentilmente, debruça-se para apanhar os livros e a contorna no olhar. Ela sorri, mas percebe que o tipo franzino não lhe é adequado.
— Desculpe-me o desastre! Infelizmente isso me acontece não raramente. Sou um desastrado!
— Oh! Que isso! Não se importe! Creio que exagerei na leitura... Não quer se assentar?
— Não, não quero a incomodar! Já lhe atrapalhei muito por hoje...
— Não é nenhum incômodo. Percebo que também estuda aqui no campus. Estou certa?
— Sim, sou um aluno especial. Trabalho com filosofia.
— Que bom! Adoro pesquisar os clássicos! Poderia me ajudar na monografia em que estou trabalhando.
O encontro frutificara e, em duas semanas, o gentil rapaz já lhe tinha na admiração. Fez-lhe rir, causando pela eloquente justificava a respeito dos poderes do mal como fonte de equilíbrio à natureza e ao homem. A confiança chegou ao ponto de confessar-lhe o inédito:
— Já sonhei com Lúcifer, acredita?
— Como? Isso é possível?
— Não sei, mas incomodou-me de certo modo não temê-lo. Senti culpa por não sentir um mínimo de aversão ou medo, o que é comum num caso como esse. Sempre fugia à minha presença.
— Interessante, fale-me mais do assunto!...
Estranhamente um imenso fio começava a conduzir inconscientemente o casal a uma inquieta versão do destino. Lúcifer, ao que tudo indicava, tinha ameaçada sua autoridade em virtude de uma fraqueza comum aos demônios: a pureza.
— Você não está acreditando nessa balela, está? – falava a jovem em sua explanação filosófica.
— Sim, continua... Então, você estuda mitos da humanidade?
— Anjos, demônios, assomabrações...
Atordoado, o jovem pensava nos benefícios concedidos por Lúcifer a ele, o seu predileto companheiro nas disputas “angelicais” – soa até religioso a expressão – mas, venturosamente, fizeram decair muitos anjos. E agora teria de enfrentar ser tão angélico e frágil... Como?
Continuava a jovem:
— Ouça: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre sua linhagem e a dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn.3,15).
Vencedores até ali de grandes batalhas, como uma única mulher poderia causar a cisma de uma cúpula de demônios. Sem trazer consigo nenhuma insígnia religiosa, uma relíquia sequer, sem servir a deuses, santos, nenhuma cruz, nenhum sinal de crença. Como poderia causar a derrocada de um relacionamento entre ele, sempre tão fiel, e seu mestre a quem guardava em admiração. Uma mulher?
Trajado, incomumente, descia à noite na capital, Paris, deslizando à torre que faiscava a seus pés, ornado para uma batalha, duplas asas negras abriam-se e cintilavam à lua. Decidido, irado, não permitiria uma palavra a insolente mulher que lhe tirava a paz e somava-lhe lágrimas ao rosto.
— Por quê? – indagava ao destino.
Uma imensa pista de óleo e piche acendia-se em furor à velocidade que lhe impunha os pés. O ódio dançava em seu peito, o chão vertia crateras... Havia passado o bosque dos decrépitos, como chamavam os estudantes que vinham das farras, noitadas e orgias acadêmicas.
Ao se deparar com o alojamento, a energia dos seus olhos eram capazes de consumir toda a luz natural do ambiente num só fitar. A janela da jovem estava semi-aberta. À entrada, uma varanda na qual pousou seus pés, escondido entre as folhagens e possuído pelo sentimento agudo da devassidão, esperava o olhar da pobre vítima encontrá-lo num circuito fatal de sinergias. No entanto, surge inconsciente da emboscada, enrolada em uma toalha, com os perfumes e vapores da sua pueril virgindade, atônito e resistente, ouviu-a cantar uma canção de amor. Falava de um príncipe desconhecido, cantou em suaves sorrisos, imaginava-se tocada pelo jovem.
Alícius sentia a pelagem acinzentar-se e ceder-se aos encantos da fêmea. Sabia que de algum modo fora tocado em extremos na sua sensibilidade áurea.
— Não! Não posso!
— Oh... Soc... – antes do grito tapa-lhe a boca espantado.
— Espere! Sou eu Alícius.
Concorda em ficar em silêncio.
— O que faz aqui? – indaga a jovem.
— Tenho uma missão... Depois explico...
Ao confrontarem os olhos, Alicius viaja a instâncias salutares e, num flash, percebe a genealogia da garota abrir portais infindos de luminescente luz. No oposto, a bela jovem vê a pupila de arestas inflamadas cujo núcleo rasgava-se em depressivas nuances cromáticas e uma abóbada escarlate trazendo uma marca esotérica.
— Você? – assustou-se a garota.
— O que vê? – perguntou atônito.
— Uma marca...
— É a marca da morte...
— Como retirá-la? Fale-me!
— É uma marca indelével, garota. Não há como aniquila-la. Só há como não torná-la um tormento eterno.
— Como?
— Cumprindo a minha sina. Fanzendo o que a marca impõe ao seu possuidor...
No Monte Escarpado, sobre Tanatus, as dominações riam das demonstrações de fraqueza do anjo. O próprio Lúcifer transformava objetos translúcidos em gigantescas evoluções pirotécnicas, pois sabia o peso do cabresto sob o servo agora atormentado por uma mistura de volúpia pela morte e dor pelo afeto humano.
— É dos meus... Vai devorá-la e se submeter à natureza bestial do meu exército... Não há o que mais fazer. Desçamos para a forra!
Precipitavam, assim, das regiões insólitas de Tanatus e de Scerigórnia todas as legiões dos infernos para presenciarem o desfecho daquele acontecimento dramático. Eufóricos inundavam as encostas e provocavam tornados.
Ao chegarem nos arredores do prédio, aguardaram o príncipe das trevas, a fera. Esse por sua vez adiantou a planta dos pés animalescos sobre o pátio... Entrou sorrateiro pela varanda e, quando afastou a cortina da janela, notou o silêncio profundo e a presença da marca que impusera ao servo...
— A marca da morte! Sinto-a presente...
Sorriu satisfeito... Viu sangue espalhado pelo piso... Percebeu sinais de dor e sofrimento em todo o ambiente... sorveu todo o sofrimento impregnado nas paredes e grunhiu certo da pertença... Havia cheiro de lágrimas escaldantes... Um grito havia ressoado por aquele recinto em pleno horror e mantinha ali o seu eco estridente. A menina não estava... O vazio era para ele uma sentença mortal...
— Onde está você, Alícius? Não se esconda! Não precisa se envergonhar... Sei que foi doloroso, mas vencemos a prova... É dos meus o melhor... Agora coragem! Não vai me responder?... Ó, coitado! Hehehehehe. Farei arder os seus olhos pela marca que te dei... Pois bem... Eleva-se agora a minha ira... Encham-te os olhos do meu rubro sangue escarlate e surjam incandescentes!
Lúcifer percebe se elevarem do assoalho em par os olhos de Alícius, permanecendo diante dos seus escarlates e fulgurantes. Alícius sumira...
Do lado de fora, triunfante um amor que vencera toda a prova, apoiado pela jovem que lhe trouxera luz à vida, Alícius caminhava certo de que o amor o tornara cego, mas eternamente feliz.
Na terra de Tanatus, clamor, pranto e ranger de dentes. Às mãos de Lúcifer, a inexorável sentença que espera os seus seguidores junto às chamas do lago Neural: a incandescente marca da morte.

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